Confessionário e carvalho, duas
‘vidas’ multisseculares
Pensando eu em contar o que vi e ouvi na minha longa vida ─ desde que o mundo é mundo ─, tropeço numa cobra.
A serpente ─ daquela que ludibriou Eva ─ procura desencorajar-me: um pedaço de pau quer ser escritor? o quê você tem para narrar? quem vai te ler?
Não costumo me dobrar nem com a onda dos ventos, como o bambu, mas fiquei um pouco abalado.
Memórias de tudo ─ Até que me lembrei de precedentes que não sei se você sabe. Pois existem memórias para tudo: memórias de um burro (da Condessa de Segur), memórias de uma forca (feita de carvalho por sinal, de Eça de Queiroz), e até memórias de um cabo de vassoura… Então, não tive mais dúvidas.
Sendo eu madeira de lei ─ obediente ao machado, à serra e aos seus auxiliares, pois fui criado para servir ─, estou bem colocado em lugares estratégicos, sob a forma de armários, mesas, cadeiras… Então, fica fácil recolher informações interessantes nos mais variados ambientes, para compor as memórias carvalhescas.
Cabine do perdão ─ Mas, refletindo melhor, resolvi concentrar a atenção em um só móvel, o confessionário, que tem finalidade única e específica: servir de suporte para as pessoas reatarem a amizade com Deus, através da confissão! Não duvido em chamar de cabine do perdão essa peça tradicional e tão emblemática! Só perde para o ambão e o altar.
Serpente: você vai contar para todo mundo os pecados dos outros? Não tem medo de ser excomungado?
Nem dei ouvidos a esse animal rastejante que vi introduzir o pecado na humanidade, e que terá a cabeça ferida pela mulher, segundo ameaça que ouvi do próprio Deus (cf Gênesis 3). Sei muito bem onde estou pisando.
Até na Bíblia ─ Aliás, sou madeira nobre, e meus tonéis são muito apreciados para guardar vinho. E creio oportuno lembrar que tenho antepassados célebres, inclusive registros em mais de vinte passagens bíblicas. O carvalho de Mambré passou para a História por ter assistido à aparição do Senhor a Abraão (Gênesis 18).
Frondoso carvalho no Castelo de Vincennes, na França, contou-me que um rei francês gostava de ficar à sua sombra, ouvindo os apelos e pedidos de seus súditos, ricos ou pobres. Fazia isso algumas vezes por semana, e seu nome é São Luís IX, que reinou de 1226 a 1270.
Provavelmente o marceneiro São José, pai legal de Jesus, trabalhou com a madeira carvalho. E pode ser que alguns de minha família tenham assistido à Paixão de Cristo. Mas, para não ser acusado de fazer afirmações sem provas, disse no condicional. Pequeno pormenor: na Palestina tem muito carvalho.
É da família ─ Agora, serpentinha faladeira, ouça mais esta: uma das 600 espécies de carvalho se chama azinheira, sobre a qual, em Fátima, a Mãe do Criador escolheu para pousar várias vezes em 1917. Que honra ter ‘parente’ tão privilegiada! As mensagens destes segredos de Fátima tendem a ocupar importância cada vez mais relevante nos acontecimentos, e junto com suas narrativas estará sempre a carvalhesca azinheira, que, evidentemente, ouviu tudo…
Ah! Estou a desviar do assunto proposto. Desculpe-me.
Eu, confessionário de carvalho ─ simples cabine com cadeira para o padre e genuflexório para o penitente ─, quantas cenas presenciei, ao longo dos séculos, mundo afora! Não me refiro aos assuntos tratados entre confessor e penitente. Sei bem que não posso abusar da confiança em mim depositada, e sair por aí revelando segredos de confissão. Garanto: não sou madeira fofoqueira…
Mas, escarafunchando a memória, vem à tona este caso, que é um belo exemplo: no tempo das Cruzadas, um jovem nobre recebe como penitência participar de batalhas na Terra Santa, para onde segue com entusiasmo, e torna-se um comandante aguerrido e vitorioso. #